Discurso de Posse de Iasmim Ferreira
DISCURSO DE POSSE NA CADEIRA Nº 25 DE MEMBROS EFETIVOS
Senhor Lucas Lamonier Silva Santos, Presidente da Academia Gloriense de Letras, em nome de quem cumprimento toda a mesa,
Senhoras e Senhores, acadêmicas/os, autoridades presentes, minha família, caras/os amigas/os,
A noite de hoje cumpre uma reflexão acerca do elo maior que nos une neste dia: a literatura. Compartilho do pensamento do escritor português José Saramago, o qual afirma: "somos todos escritores, só que alguns escrevem e outros não". Na infância, convivemos com personagens e super-heróis que fazem parte de nossas brincadeiras. Todos nós, depois de um dia de trabalho, deitamo-nos, dormimos e sonhamos. Sonhar é fabular, e fabular é pisar em chão literário. Quanto mais o tempo passa, a imaginação cede lugar às obrigações corriqueiras. Entretanto, jamais perdemos a capacidade de fabular; ela permanece viva e quando se pode pulula em nossas afecções. Perder a capacidade de fabular é amputar nosso processo de humanização. Já dizia o crítico literário brasileiro Antonio Candido ser a "literatura um direito inalienável". Contudo, a sociedade capitalista estratifica o acesso aos bens culturais e esse direito é negado a boa parte das/dos brasileiras/os.
No entanto, em toda bolha há um furo. Eis que sou um furo na bolha. Venho das camadas populares e desde cedo as letras fizeram parte do meu cotidiano. Para isso, um percurso na educação foi construído e professoras/es me conduziram nessa jornada. Aproveito o ensejo para agradecer às/aos educadoras/es que tive em nome da professora e confreira Maria do Carmo Sousa: obrigada por me acolher e orientar no ensino fundamental; juntas conseguimos alguns títulos em concursos de redação. Agradeço ao professor, poeta e confrade Jorge Henrique Vieira Santos pelo exemplo profissional e pela oficina de cordel ministrada em 2008, um pontapé para o meu flerte com a literatura, tornando-a uma missão e um compromisso de vida.
Neste dia tão especial, sinto-me honrada por ser eleita para Membro Efetivo da Academia Gloriense de Letras (AGL). Uma academia literária ativa e presente na vida da população da Capital do Sertão. As academias podem ser instrumentos na democratização do acesso à literatura, alegro-me em poder participar do cumprimento dessa missão.
Não posso me eximir de demarcar o meu espaço enquanto mulher. Ingressar numa academia literária ainda jovem e num cenário histórico brasileiro hostil ao avanço das mulheres como protagonistas é um momento de celebração, mas, sobretudo, de rememorar a luta das mulheres para serem reconhecidas nas ciências, no mercado de trabalho e nas artes; já que "o mundo sempre pertenceu aos machos", segundo a escritora francesa Simone de Beauvoir (marco da luta feminista no mundo ocidental). Por conseguinte, no campo das letras não é diferente. O ingresso da primeira mulher na Academia Brasileira de Letras só ocorreu oitenta anos depois de sua fundação, tendo a escritora nordestina Rachel de Queiroz como a sua primeira acadêmica. Na Academia Sergipana de Letras, a abre-alas se deu com Núbia Marques. Todavia, a AGL desde a sua fundação já tinha a presença feminina, marcada pelas acadêmicas Gileide Barbosa de Souza Santos e Maria Verônica Santana Sales. Apesar dos avanços, nós ainda temos muitos caminhos a serem percorridos em diferentes áreas, para chegarmos ao sonho da escritora Josefina Álvares de Azevedo: de sermos "instruídas e livres".
Aprendi com as culturas africanas a respeitar e memorar os antepassados. Nesta cadeira, reflito e memoro a poesia de Maria Lídia Santos, minha avó materna, que permanece viva na memória de quem a conheceu. Lídia, mulher forte e destemida, que fazia poesia com as mãos na enxada e no canavial. Sua cabeça prodigiosa carregava muita lenha e queimava de fabulações. Sua poesia silenciada conclama a minha que não se cale. Sua privação aos estudos e aos privilégios redundam para mim em fabulação de um mundo melhor, igualitário, sem classes, sem distinção, sem diferenças de gênero.
Maria Lídia Santos foi mais uma das trabalhadoras das fazendas de cana de açúcar, personagens que ganham espaço na tessitura da escritora sergipana, Alina Leite Paim. Nascida na cidade de Estância. Professora, marxista, feminista. Uma dessas "flores que nascem no asfalto", como dizia a vereadora Marielle Franco. Alina Paim, minha patronesse, teve oportunidades distintas das de minha avó. Suas fabulações não foram elaboradas enquanto carregava lenha ou cortava cana. Sua luta pela igualdade de classes e de gênero entrecorta a sua produção literária, a qual se torna impossível de se ler sem a acuidade dessas perspectivas. Paim produziu dez romances e quatro obras destinadas ao público infantil. Lecionou para filhas/os de pescadores, na ilha de Marambaia, RJ. A sergipana produziu concomitante à terceira fase do Modernismo, período em que grandes nomes da literatura surgiram, como Clarice Lispector e João Guimarães Rosa. Quiçá tenha sido ofuscada por esses grandes sóis literários naquele momento. Não obstante, nossa escritora foi premiada pela Associação Brasileira do Livro com o romance Sol de meio-dia (1962), prefaciado por Jorge Amado e traduzido para quatro idiomas. Nos últimos anos tem sido redescoberta pela crítica literária, sobretudo, pela professora doutora Ana Leal. Neste ano de 2019, centenário de seu nascimento, foi homenageada pelo XVIII Seminário Internacional Mulher & Literatura, sediado na Universidade Federal de Sergipe, de 14 a 17 de agosto. Hoje, tenho a honra de divulgar a sua obra e fazer o seu nome ainda mais conhecido. Alinho-me à sua voz para nos desvencilhar da Sombra do Patriarca. Vamos Alina Paim nos guiar pela Correnteza. Vamos, minha patronesse, ao Sol de meio-dia pela Estrada da Liberdade. Vamos à Casa da Coruja Verde e aos Flocos de Algodão.
Por fim, agradeço a Jesus Cristo, que nas palavras da escritora Ana Montenegro é o "Jesus que chega às portas no Natal". Este não chegou às portas do meu espírito, mas arrebatou-me pelo exemplo de fraternidade e de luta pelos oprimidos. Agradeço às mulheres fortes de minha parentela que como Paim me ensinam a sonhar e a lutar. Agradeço às/aos alunas/os por me ajudarem na construção do conhecimento diariamente. Agradeço ao Leia Mulheres Glória, bem como às mediadoras pelos exercícios de sororidade e de poder da literatura. Agradeço à AGL por me acolher e pela partilha da literatura nesta cidade. Reitero o meu compromisso com a literatura como uma missão de vida e de luta. Para tanto, é preciso afastar-se do espelho de Narciso, o qual segundo a escritora Conceição Evaristo, deve ser reconstruído para que as pessoas à margem possam se ver refletir. Portanto, sem o culto à vaidade, com os olhos firmes nas mulheres que me antecederam e seus diversos enfrentamentos, com a certeza de que a literatura ainda é um privilégio para poucos, chancelo a minha cadeira, de nº 25, como um lugar onde assenta uma mulher de espírito dessossegado, o qual só sossegará quando a utopia da igualdade for uma realidade próxima.
Iasmim Santos Ferreira
Membro
Efetivo da AGL
Cadeira
Nº 25