A poesia encantadora de Iara Vieira

09/04/2016

Jorge Henrique Vieira Santos

Tive o prazer de conhecer Iara Vieira, primeiro através de sua poesia, que me foi apresentada pelo meu querido professor José Araújo Filho, depois, pessoalmente, por intermédio do mesmo professor, que a convidou, juntamente com o poeta Ronaldson Sousa, para um debate sobre criação poética e crítica literária em nossa turma de graduação em Letras da UFS, em 1999. Três anos depois, também por intermédio de outro querido professor da graduação, José Costa, tive a grande honra de apresentar ao público meu primeiro livro de poemas, "Mutante in Sanidade", num evento acadêmico da UFS em que também essa ilustre poeta aracajuana apresentava seu livro "O Coro da Serpente" ao lado de Antonio Carlos Viana que divulgava o seu "No meio do mundo e outros contos". Não tive a oportunidade de uma aproximação maior com a pessoa de Iara Vieira. No pouco contato que tivemos, pude perceber apenas sua discrição e delicada objetividade ao tratar de seus poemas. Sua poesia me encantou, desde o início, pela aparente simplicidade, sutileza de imagens e absoluta concisão e, em 2012, quando me foi dada a condição de propor o nome de um ilustre sergipano que pudesse ser homenageado como patrono da cadeira nº 04 da Academia Gloriense de Letras, da qual me tornei o primeiro titular, não hesitei em indicá-la.

Lamentavelmente, não tive acesso ainda a toda a sua obra, daí não ter subsídios para oferecer uma apreciação global de sua poesia. Quero, pois, apresentá-la propondo apenas uma rápida reflexão sobre três de seus livros e trazendo para essa discussão, sobretudo, o que disseram acerca de sua produção os escritores Inácio de Loyola Brandão, Antônio Carlos Viana e a pesquisadora Maria Carolina Barcellos.

Antes, porém, faz-se necessária uma pequena notícia biográfica.

Iara Santos Vieira nasceu em Aracaju em 09 de abril de 1949. Passou a infância em Maceió e a adolescência em Salvador, retornando posteriormente a sua terra natal onde se formou em Letras, pela Universidade Federal de Sergipe, e atuou como professora em escolas de nível médio e ensino superior. Como professora, promoveu seminários, oficinas de criação e desenvolveu diversos projetos, dentre os quais o projeto "O escritor mais perto do estudante: uma experiência viva". Através desse projeto, trouxe para Aracaju nomes expressivos do cenário literário nacional, como Lygia Fagundes Telles, Nélida Pinõn, Marina Colassanti, João Ubaldo Ribeiro, Ignácio Loyola Brandão, Osmar Lins, Afonso Romano de Sant'Anna, Renata Pallottini, entre outros, proporcionando aos seus alunos a experiência de conhecerem e conversarem com grandes escritores. Mantinha uma ativa vida cultural publicando poemas, resenhas e artigos em jornais e revistas locais e de outros Estados. Desenvolveu, juntamente com Maruze Reis, importantes projetos na área cultural do Estado, promovendo cursos, seminários e coordenando oficinas literárias que estimularam e revelaram novos talentos sergipanos. Fez sua estreia na poesia em 1977, cuidando pessoalmente da edição de seu livro Ruínas, cuja apresentação foi assinada por Inácio de Loyola Brandão. Cinco anos depois, editado dessa vez pela Secretaria de Cultura e Arte de Sergipe, aventurou-se na prosa com o livro de contos Interiores. De volta à poesia, lançou Esses tempos ad/versos (1984), A fome do paraíso (1994) e O coro da serpente (2001). Além de suas obras individuais, integrou as seguintes antologias: Ensaios V, SP (1981), Poesia Jovem: anos 70, SP (1982), Antologia da Nova Poesia Brasileira, RJ, (1992), Poesia livre, Ouro Preto (1982) e Poesia Sergipana no Século XX, RJ (1998). Reconhecida em seu ofício, foi premiada em diversos concursos nacionais, dentre os quais: Veia Poética, SP (1981), 2° Concurso Mackenzie de Poesia, SP, (1981), XII Concurso de Poesia Falada do Norte/Nordeste, Aracaju, 1983, Prêmio Escriba de Poesia Piracicaba, 1999, 2° Concurso Internacional de Poesia Mulheres Emergentes, Belo Horizonte (1999). Faleceu em 19 de setembro de 2003, antes da publicação de seu livro Íntima Humanidade, editado pela Secretaria de Estado da Cultura de Sergipe, em dezembro de 2003.

Na apresentação de seu livro, Ruínas (1977), Inácio de Loyola Brandão enfatizou que o trabalho de quem escreve consiste na palavra e permite não apenas seu uso, mas seu abuso. Deve, pois, consentir "o destrinchar a sua mecânica interna, o desmontar a sua estrutura", "o não contentar-se com sua fórmula natural", em busca de novas possibilidades, novas combinações. Segundo ele, já em seu livro de estreia, Iara Vieira fez esse trabalho "de modo curioso, experimental", em que visava "descobrir o homem, a situação do homem".

De fato, desde o início, Iara procurou inscrever sua poesia no contexto da contemporaneidade, tentando apropriar-se da linguagem e das inovações estéticas de seu tempo, conforme também o ratifica Assis Brasil:

"Já podemos situar Iara Vieira numa fase pós-modernista da literatura sergipana, a que reflete, na década de 70, uma certa virada conteudística e estética". (BRASIL, 1998, P. 175)

Por isso a experimentação formal que marca seu primeiro livro, cujos poemas extrapolam a linearidade, desmontando frases e palavras e explorando os espaços para despencarem, página a página, em ruínas, o que também reflete, em seu aspecto temático, certa fragmentação do eu, numa busca contínua por uma identidade que se diluiu no contexto contemporâneo.

No entanto, a liberdade formal no uso e abuso das palavras, que bem caracteriza Ruínas, vai, nas obras posteriores, evoluindo para uma poesia cada vez mais econômica, condensada, em que as palavras são criteriosamente selecionadas, a fim de potencializar seus efeitos de sentidos. A concisão passa a ser a marca de seu estilo.

No prefácio de seu terceiro livro, A fome do Paraíso (1994, p. 11), Antônio Carlos Viana afirma que cada palavra de seus versos curtos parece ter sido "pesada cuidadosamente". Opinião comungada por Pallotini (apud BRASIL, 1998, P. 175), ao enfatizar que "ela faz uma poesia de poucas e essenciais palavras, radicalmente escolhidas", e também por Barcellos (2010, p. 02), ao asseverar que é clara sua seleção de palavras e "quanto menores são seus poemas, mais encontramos sutilezas de sentido".

Essa economia vocabular, associada ao cuidado da seleção e à sutileza de suas imagens, provoca no leitor a sensação de leveza e simplicidade, mas revela, desde Ruínas, sua profunda consciência do fazer poético. Consciência que se mostra mais abertamente ao leitor pela metalinguagem de alguns poemas, ou, para os mais atentos, pelas suas sutis marcas de organização e associação, que revelam a unidade temática de seus livros.

Viana (1994), em seu referido prefácio "Paraíso de Pedras", orienta aos leitores que levem em conta essa unidade global, que a poeta constrói por meio das pistas simbólicas deixadas em seus poemas, sem as quais não se pode interpretar o livro plenamente. Considerando essas pistas, ele entende que a fome de que trata o título do livro não se refere à melancolia por um paraíso perdido, mas por um que se quer alcançar por meio de uma consciente busca estética.

Os 15 poemas que compõem a obra "A fome do Paraíso" vão, gradativamente, construindo um sentido global em que a nostalgia, num primeiro momento, está associada a um paraíso que corresponde ao ambiente familiar, sobretudo à figura materna, mas que, à medida que a leitura avança, configura-se como um anseio vital por outro paraíso, em que a plenitude do eu encontra-se na linguagem e na criação. Para Viana (1994, p. 13), o livro define a trajetória de um sujeito lírico que procura na e pela palavra a libertação do primeiro paraíso enquanto funda o segundo. Nessa trajetória poética de busca de uma identidade, esse sujeito põe em xeque não só as noções de família, que ganham contornos negativos, mas questiona a própria poesia, pela consciência de que o domínio da palavra não garante o domínio da poesia, uma vez que "nenhuma palavra sacia a fome do que se quer dizer", ou seja, quanto mais penetra no "reino da palavra", mais aumenta sua avidez.

A consciência de que a poesia preenche um enorme vazio e abre outros ainda maiores alimenta sua fome e faz de sua busca uma constante que lhe confere não só a coragem de aniquilar valores relativos às noções de pai e mãe, como o fez em "A fome do Paraíso", como subverter, com sua poética, a visão comum relativa à divindade da tradição judaico-cristã ocidental, como o fez em "O Coro da Serpente".

Nessa obra polifônica, várias vozes guiadas pela figura simbólica da serpente se cruzam em econômicos e densos poemas formando um coro que oferece ao leitor outros olhares sobre episódios bíblicos. Mais uma vez, sua busca estética a coloca na contingência de questionar valores instituídos, o que faz corajosamente. Segundo Barcellos (2014, p.2), Iara estabelece uma "narrativa emancipada e, por vezes, subversiva" das figuras bíblicas do Antigo e do Novo Testamento, deixando aflorar não apenas sua aflição pessoal, mas a angústia característica da emergência do feminino na escrita do século XX (BARCELLOS, 2010).

Como se observou, o talento e a maturidade poética demonstrados em apenas alguns de seus livros teriam alcançado escalas muito mais elevadas caso a poeta não tivesse nos deixado tão cedo. Sua poesia, como o canto da sereia da lenda amazônica, encanta e enleva aquele que a lê. Quem mergulha em seus versos jamais volta ao estado anterior. Por isso é importante o estudo e a divulgação de sua obra. Espero poder honrar a herança humanística, literária e cultural dessa ilustre sergipana, Patronesse da cadeira que ocupo nesta digna instituição.


REFERÊNCIAS

BARCELLOS, M. C. A figura mítica de Lilith na poética de Iara Vieira. São Cristóvão: Anais do II Senalic. Vol. 2, GELIC, 2010.

Acesso em: 09 de abril de 2016

_________________. A mulher no imaginário bíblico na obra o coro da serpente, da escritora Iara Vieira. São Cristóvão: Anais do V Senalic. Vol. 5, GELIC, 2014.

Acesso em: 09 de abril de 2016

BRANDÃO, I. L. In: VIEIRA, I. Ruínas. Edição da autora, SE, 1977, p. 09.

BRASIL, A. (Org.). A poesia sergipana no século XX (antologia). Rio de Janeiro: Imago Ed.; Aracaju: Secretaria de Estado da Educação e do Desporto e Lazer de Sergipe,1998.

PALLOTINI, R. in: BRASIL, A. (Org.). A poesia sergipana no século XX (antologia). Rio de Janeiro: Imago Ed.; Aracaju: Secretaria de Estado da Educação e do Desporto e Lazer de Sergipe,1998, p. 175.

VIANA, A. C. Paraíso de Pedras in: VIEIRA, I. A fome do paraíso. Série Poesia na UERJ/RJ, 1996, p. 11-14.

VIEIRA, I. A fome do paraíso. Série Poesia na UERJ/RJ, 1996.

________. O coro da serpente. Belo Horizonte: Mulheres Emergentes Edições Alternativas, 2001.

________. Ruínas. Edição da autora, SE, 1977.